sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Surpresas da Doença Celíaca

O estudo de uma enfermidade induzida por alimentos e potencialmente fatal levou à descoberta de um processo que pode tratar de muitos outros distúrbios autoimunes


JUPITER IMAGES (foto); JEN CHRISTIANSEN (foto-ilustração)

Meu voto para a revolução científica mais importante de todos os tempos iria para o Oriente Médio de 10 mil anos atrás, quando se notou pela primeira vez que novas plantas se originam de sementes caídas no chão a partir de outras plantas – constatação que levou ao nascimento da agricultura. Antes dessa observação, as pessoas baseavam sua dieta em frutas, castanhas, tubérculos e eventuais carnes. Tinham de se deslocar para onde a comida estivesse, à mercê dos eventos, tornando impossíveis planejamentos de longo prazo.
Ao descobrir o segredo das sementes, rapidamente aprenderam a cultivar vegetais em casa e, finalmente, a cruzar diferentes plantas gramíneas para criar grãos fundamentais como trigo, centeio e cevada, que eram nutritivos, versáteis, estocáveis e valiosos para comercialização. Pela primeira vez, as pessoas tiveram a chance de abandonar a vida nômade e construir cidades. Não por coincidência, as primeiras áreas agrícolas também se tornaram “berços de civilização”.
Esse avanço, entretanto, cobrou um preço alto: o aparecimento de uma enfermidade agora conhecida como Doença Celíaca (DC), induzida pela ingestão de uma proteína do trigo chamada glúten, ou por proteínas similares no centeio e na cevada. O glúten e seus parentes não faziam parte antes da dieta humana. Mas, uma vez que os grãos começaram a alimentar as crescentes comunidades estáveis, as proteínas passaram também a matar pessoas (frequentemente crianças), quando seus corpos reagiam de forma anormal a elas. A ingestão repetida dessas proteínas resultou em indivíduos sensíveis e incapazes de absorver adequadamente nutrientes dos alimentos. Essas vítimas também sofreriam de dores abdominais recorrentes e diarreia, exibindo corpos definhados e barrigas inchadas de pessoas famélicas. A nutrição deficiente e várias de outras complicações tornaram suas vidas relativamente curtas e sofridas.
Se essas mortes fossem noticiadas na época, sua causa teria sido um mistério. Nos últimos 20 anos, entretanto, os cientistas vêm sistematizando o conhecimento detalhado da DC. Agora sabem que é um distúrbio autoimune, onde o sistema imunológico ataca os tecidos do próprio organismo. E sabem que a doença surge não apenas do consumo do glúten e de seus congêneres, mas também de uma combinação de fatores que incluem genes predisponentes e anomalias na estrutura do intestino delgado.
Além disso, a DC proporciona um exemplo ilustrativo do modo como uma tríade – um indutor ambiental, genes suscetíveis e uma anomalia intestinal – pode exercer um papel em muitos distúrbios autoimunes. As pesquisas sobre DC têm então sugerido novos tipos de tratamento não apenas para a doença em si, mas também para várias outras condições autoimunes, como diabetes tipo I, esclerose múltipla e artrite reumatoide.

Revelações Iniciais

Após o advento da agricultura, milhares de anos se passaram antes que casos de crianças aparentemente bem alimentadas, mas subnutridas, fossem documentados. A Doença Celíaca recebeu um nome no primeiro século d.C., quando Areateus da Capadócia, médico grego, relatou a primeira descrição científica, chamando-a koiliakos, a partir da palavra grega para abdome, koelia. O médico britânico Samuel Gee é creditado como o moderno pai da DC. Em palestra de 1887 ele a descreveu como “um tipo de indigestão crônica encontrada em pessoas de todas as idades, ainda que seja especialmente apta a afetar crianças entre 1 e 5 anos”. Ele suspeitou corretamente que “erros da dieta possam ser talvez uma causa”. Mas a verdadeira natureza da doença escapou até de sua perspicácia, como fi cava claro em sua prescrição dietética: alimentar essas crianças com fatias finas de pão e tostadas em ambos os lados.
A identificação do glúten como causa da doença ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando o pediatra holandês Willem-Karel Dicke relatou que o racionamento de pão na Holanda em razão da guerra provocou uma queda significativa nos índices de mortalidade entre as crianças afetadas pela DC – de mais de 35% a praticamente zero. Ele também relatou que, quando o trigo voltou a estar disponível após o conflito, os índices de mortalidade retornaram aos níveis prévios. Baseando-se no relato de Dicke, outros cientistas analisaram os diferentes componentes do trigo, descobrindo que a principal proteína naquele grão, o glúten, era a culpada.
Focando-se nos efeitos biológicos do glúten, os pesquisadores notaram que sua exposição repetida em pacientes com DC faz com que as vilosidades – estruturas do intestino delgado com formato de dedos – tornem-se cronicamente inflamadas e danificadas, incapazes de executar sua função normal: quebrar as moléculas dos alimentos e absorver os nutrientes, transportando-os através da parede intestinal em direção à corrente sanguínea para que alcancem todo o corpo. Felizmente, se a doença é diagnosticada suficientemente cedo e o paciente orientado a seguir uma dieta sem glúten, a arquitetura do intestino delgado quase sempre volta ao normal, ou quase isso, e os sintomas gastrointestinais desaparecem.
Em uma pessoa suscetível, o glúten causa essa inflamação e danos intestinais ao induzir a atividade de várias células do sistema imunológico. Essas células, por sua vez, danificam tecidos saudáveis na tentativa de destruir o que elas avaliam ser um agente infeccioso.

Uma Descoberta Diagnóstica

Maiores detalhes dos mecanismos pelos quais o glúten afeta a atividade imunológica ainda estão sendo estudados, mas uma revelação específica já provou sua utilidade no meio clínico: uma característica da resposta imune aberrante ao glúten é a produção de moléculas de anticorpos direcionadas a uma enzima chamada transglutaminase tecidual. Essa enzima vaza a partir de células danificadas em áreas inflamadas do intestino delgado e tenta auxiliar no reparo do tecido circundante.
A descoberta de que esses anticorpos são comuns na DC adicionou uma nova ferramenta para diagnosticar o distúrbio e também permitiu à minha equipe e a outros pesquisadores avaliar a incidência da doença com uma nova abordagem – ao examinar pessoas com presença desses anticorpos no seu sangue. Antes disso, os médicos faziam apenas exames gerais e, por isso, o procedimento mais confiável de diagnosticar a doença era revisar os sintomas dos pacientes, confirmar a inflamação intestinal por uma biopsia do intestino e verificar que uma dieta sem glúten aliviaria os sintomas. (Procurar por anticorpos contra o glúten não define o diagnóstico, pois eles também podem aparecer em pessoas sem DC.)
Durante anos a DC foi considerada uma doença rara fora da Europa. Na América do Norte, por exemplo, os sintomas clássicos foram reconhecidos em menos de uma em cada 10 mil pessoas. Em 2003 publicamos os resultados de nosso estudo – a maior análise de pessoas com DC já conduzida na América do Norte, envolvendo mais de 13 mil pessoas. De modo aterrador, descobrimos que 1 em 133 indivíduos aparentemente saudáveis era afetado, o que significa uma doença cerca de cem vezes mais comum do que se pensava. O trabalho de outros pesquisadores confirmou níveis similares em muitos países, em todos os continentes.
Como 99% dos casos escaparam à detecção por tanto tempo? Os clássicos sinais externos – indigestão persistente e diarreia – aparecem apenas quando regiões grandes e críticas do intestino estão inflamadas. Se um pequeno segmento do intestino é disfuncional ou se a inflamação é leve, os sintomas podem ser menos dramáticos ou atípicos.
Também está claro que a DC frequentemente se manifesta por vários sintomas previamente desprezados, que são provocados por distúrbios locais da absorção de nutrientes do intestino. Alteração da absorção de ferro, por exemplo, causa anemia, e a ingestão deficiente de folato pode levar a uma série de problemas neurológicos. Ao subtrair do corpo nutrientes específicos, a DC pode então produzir sintomas como os da osteoporose, dores articulares, fadiga crônica, baixa estatura, lesões na pele, epilepsia, demência, esquizofrenia e convulsões.
Porque a DC frequentemente se apresenta de um modo atípico, muitos casos ainda permanecem não diagnosticados. Essa nova metodologia para reconhecer a doença em todas as suas formas e em estágios precoces permite que o glúten seja removido da dieta antes que complicações mais sérias se desenvolvam.

Do Glúten à Disfunção Imunológica

A Doença Celíaca proporciona um modelo enormemente valioso para a compreensão dos distúrbios autoimunes, por ser o único exemplo em que a adição ou a remoção de um simples componente ambiental, o glúten, pode ligar ou desligar o processo da doença. (Embora fatores ambientais sejam suspeitos de exercer papéis em outras doenças autoimunes, nenhum foi positivamente identificado.)
Para ver como o glúten pode ter um efeito devastador em algumas pessoas, consideremos como o corpo responde a ele na maioria da população. Naqueles sem DC, o corpo não reage. O sistema imunológico normal entra em ação apenas quando detecta níveis significativos de proteínas estranhas no corpo, reagindo agressivamente porque os forasteiros podem sinalizar a chegada de microrganismos causadores de doenças, como bactérias ou vírus.
Um modo específico de encontrarmos proteínas estranhas e outras substâncias é pela alimentação, e os soldados imunológicos se posicionam sob as células epiteliais que revestem o intestino (enterócitos), prontos para atacar e pedir reforços. Uma razão pela qual nosso sistema imunológico não é estimulado por essa invasão de proteínas três vezes ao dia é que, antes que nossas defesas encontrem algo que poderia trazer problemas a elas, nosso sistema gastrointestinal geralmente quebra a maioria das proteínas ingeridas em aminoácidos padronizados – os blocos de construção a partir dos quais as proteínas são construídas.
O glúten, entretanto, tem uma estrutura peculiar: de modo incomum, é rico em aminoácidos glutamina e prolina. Essa propriedade mantém parte da molécula impenetrável ao nosso sistema de despedaçamento de proteínas, deixando pequenos fragmentos proteicos, ou peptídeos, intactos. Assim, em pessoas saudáveis, a maioria desses peptídeos fica armazenada no trato gastrointestinal e é simplesmente excretada antes que o sistema imune sequer os note. E qualquer partícula de glúten que se esgueira através do epitélio gastrointestinal é geralmente muito pequena para suscitar uma resposta significativa de um sistema imune normal.
Os pacientes com DC, porém, herdaram uma série de genes que contribuem para uma sensibilidade imunológica exacerbada ao glúten. Por exemplo, certas variações de genes codificadores de proteínas conhecidas como antígenos de histocompatibilidade leucocitária (HLAs) têm um papel. Noventa e cinco por cento das pessoas com DC têm o gene HLA DQ2 ou o DQ8, enquanto apenas 30% a 40% da população geral têm uma das duas versões. Este e outros achados sugerem que o HLA DQ2 e o DQ8 não são a única causa da hiperatividade imunológica, mas que a doença, apesar disso, é virtualmente impossível de se estabelecer sem um deles. A razão pela qual esses genes são importantes fica óbvia por estudos da função das proteínas que eles especificam.
As proteínas HLA DQ2 e DQ8 são feitas por células apresentadoras de antígenos. Essas sentinelas imunológicas atacam organismos e proteínas externos, despedaçam-nos, encaixam fragmentos protéicos selecionados em cavidades nas moléculas de HLA, e expõem os complexos HLA-proteína resultantes na superfície celular para reconhecimento por células do sistema imune chamadas linfócitos T-helper. As células T que podem reconhecer e se ligar aos complexos expostos então chamam os reforços.
Em pacientes com DC, a transglutaminase tecidual liberada por células epiteliais intestinais se liga ao glúten não digerido e modifica os peptídeos de um modo que os capacita a se ligarem fortemente às proteínas DQ2 e DQ8. Consequentemente, quando as células apresentadoras de antígenos sob as células epiteliais intestinais expõem os complexos de transglutaminase tecidual e glúten, as células unem o glúten aos HLAs e os enviam para a superfície celular, onde eles ativam células T, induzindo-as a liberar citocinas e quimiocinas (substâncias químicas que estimulam a atividade imunológica tardia). Essas substâncias químicas e o aumento das defesas imunes seriam valiosos em face de um ataque de microorganismos, mas nesse caso não são adequados e lesionam as células intestinais responsáveis pela absorção de nutrientes. Os pacientes com DC também tendem a ter outras predisposições genéticas, como a propensão à superprodução do estimulante imunológico IL-15 e por abrigar células imunológicas hiperativas que preparam o sistema imune a atacar o intestino em resposta ao glúten.

Culpado por Associação

Que papel podem cumprir os anticorpos contra a transglutaminase tecidual nessa resposta patológica ao glúten? A resposta ainda está incompleta, mas os cientistas têm alguma ideia sobre o que poderia acontecer. Quando as células epiteliais intestinais secretam transglutaminase tecidual, as células B do sistema imune a ingerem – isoladas ou associadas ao glúten. Elas então secretam anticorpos direcionados à enzima. Se os anticorpos se dirigem para a transglutaminase tecidual depositada ou próxima às células epiteliais intestinais, os anticorpos poderiam danifi car as células diretamente ou provocar outros processos destrutivos. Mas ninguém ainda sabe se eles, de fato, causam essa destruição.
Nos últimos nove anos meus colegas e eu aprendemos que a permeabilidade intestinal alterada também parece participar da DC e de outras doenças autoimunes. Com certeza, um crescente grupo de evidências sugere que virtualmente o mesmo trio de fatores dá base à maioria das, e talvez a todas, as doenças autoimunes: uma substância ambiental apresentada ao organismo, uma tendência genética do sistema imune a reagir de modo exacerbado a essa substância e um intestino alteradamente permeável.

Encontrando o Ponto Fraco

É justo dizer que inicialmente foi recebida com certo ceticismo a teoria de que um intestino vulnerável contribui para a DC e doenças autoimunes em geral, em parte por causa da maneira como os cientistas analisam o intestino. Quando eu era estudante de medicina nos anos 70, o intestino delgado era descrito como um cano composto de uma única camada de células, comparadas a ladrilhos fixados com aplicações de um “cimento” impermeável, chamadas de complexos juncionais intercelulares. Pensava-se que as junções mantinham tudo, exceto as pequenas moléculas, distante dos componentes do sistema imune no tecido subjacente aos tubos. Esse modelo simples das junções como um rejunte inerte e impermeável não inspirava legiões de pesquisadores a estudar sua estrutura, e eu estava entre os não entusiasmados.
Foi somente uma mudança de rumo inesperada, e um dos momentos mais desapontadores de minha carreira, que me levou ao estudo das junções. No final dos anos 80 eu estava trabalhando em uma vacina contra a cólera. Naquele tempo, acreditava-se que a toxina colérica seria a única causa da devastadora diarreia característica daquela infecção. Para testar essa hipótese, minha equipe anulou o gene codificador da toxina colérica da bactéria Vibrio cholerae. O senso comum sugeria que as bactérias desarmadas dessa maneira comporiam uma vacina ideal, pois as proteínas remanescentes em uma célula bacteriana viva provocariam uma forte resposta imune que protegeria contra a diarreia.
Mas, quando administramos nossas bactérias atenuadas a voluntários, a vacina provocou neles tanta diarreia que bloqueamos seu uso. Eu me senti completamente desencorajado. Anos de trabalho árduo escorreram literalmente pelo ralo e nos defrontamos com duas opções nada atraentes: desistir e caminhar para outro projeto de pesquisa, ou insistir e tentar entender o que dera errado. A intuição de que havia mais coisas nessa história nos inspirou a escolher a segunda alternativa, e essa decisão nos levou a descobrir uma nova toxina que causava diarréia por um mecanismo não descrito previamente. Este mudava a permeabilidade do intestino delgado ao desarticular aqueles complexos juncionais supostamente inertes, um efeito que permitia aos fluidos escaparem dos tecidos para o intestino. Esse “cimento” era interessante, afinal.
De fato, quase ao mesmo tempo uma série de descobertas seminais esclareceu que uma sofisticada mescla de proteínas forma os complexos juncionais; entretanto, poucas informações estavam disponíveis sobre o modo como essas estruturas eram controladas. Portanto, a descoberta da nossa toxina, que chamamos de zonula occludens, ou Zot (zonula occludens é complexo juncional em latim), proporcionou uma ferramenta valiosa para esclarecer o processo de controle. Ela revelou que uma única molécula, Zot, poderia afrouxar a complexa estrutura do complexo juncional. Nós também observamos que o sistema de controle que tornava possível esse afrouxamento era muito complicado para ter evoluído simplesmente para causar danos biológicos para o hospedeiro. O V. cholerae deve causar diarreia ao explorar uma via preexistente do hospedeiro que regula a permeabilidade intestinal.
Cinco anos após formular essa hipótese, descobrimos a zonulina, uma proteína que aumenta a permeabilidade intestinal em humanos e outros animais superiores pelo mesmo mecanismo do Zot bacteriano. Como o corpo usa a zonulina em seu beneficio é algo a definir. O mais provável é que essa molécula, secretada pelo tecido epitelial intestinal assim como pelas células de outros órgãos (complexos juncionais têm funções importantes em tecidos de todo o corpo), executa várias tarefas – incluindo a regulação do movimento dos fluidos, grandes moléculas e células imunológicas entre os compartimentos corporais.
A descoberta da zonulina nos induziu a analisar a literatura médica para distúrbios humanos caracterizados pela permeabilidade intestinal aumentada. Foi então que observamos, para minha surpresa, que muitas doenças autoimunes – entre as quais a DC, diabetes tipo I, esclerose múltipla, artrite reumatóide e doenças inflamatórias intestinais – têm como denominador comum a permeabilidade intestinal aberrante. Em muitas dessas doenças, o aumento da permeabilidade é causado por níveis anormalmente elevados da zonulina. E, na DC, está claro agora que o próprio glúten estimula a secreção exagerada de zonulina (talvez por causa da composição genética do paciente).
Essa descoberta nos levou a propor que é a permeabilidade intestinal, aumentada nos pacientes com DC, que permite ao glúten, o fator ambiental, escapar do intestino e interagir livremente com elementos geneticamente sensibilizados do sistema imunológico. Esse mecanismo, por si, sugere que remover qualquer fator da trindade causadora da alteração autoimune – o gatilho ambiental, a reatividade imunológica elevada ou a permeabilidade intestinal – seria suficiente para interromper o processo da doença.

Terapias para Derrubar a Trindade

Como mencionei antes, e como essa teoria prevê, a remoção do glúten da dieta termina por sanar o dano intestinal. Infelizmente, manter uma dieta estritamente livre de glúten a longo prazo não é fácil. O glúten é um item comum e, em muitos países, um ingrediente não citado na dieta humana. Além da aderência complicada, produtos sem glúten são menos disponíveis e mais caros que suas contrapartidas. Além disso, aderir perfeitamente durante anos a qualquer dieta para propósitos médicos é notoriamente desafiador. Por essas razões, a terapia dietética é uma solução incompleta.
Consequentemente, consideraram-se várias estratégias terapêuticas alternativas que bloqueiem pelo menos um dos elementos do processo triplo. A Alvine Pharmaceuticals, em San Carlos, Califórnia, desenvolveu terapias orais proteico-enzimáticas que quebram completamente os peptídeos do glúten normalmente resistentes ao processo digestivo, e tem um agente em estudos clínicos. Outros pesquisadores consideram meios para inibir a transglutaminase tecidual, de modo que ela não modifique quimicamente os fragmentos de glúten, não digeridos na forma em que eles se ligam efetivamente às proteínas HLA DQ2 e DQ8.
Ninguém ainda sugeriu maneiras seguras e éticas de manipular os genes que tornam as pessoas suscetíveis à doença. Mas pesquisadores se ocupam em desenvolver terapias que possam desestimular alguns dos fatores geneticamente controlados que contribuem para a hipersensibilidade do sistema imune. Por exemplo, a empresa australiana Nexpep está trabalhando em uma vacina que exporia o sistema imune a pequenas porções de glúten fortemente imunogênicas, na premissa de que exposições pequenas e repetidas definitivamente induziriam o sistema imune a tolerar o glúten.
Visando combater o defeito da barreira intestinal, eu ajudei a fundar a Alba Therapeutics para explorar o potencial de um inibidor da zonulina chamado Larazotide. (Atualmente, sou consultor científico e acionista da Alba, mas não participo mais da formulação de decisões da companhia.) O Larazotide foi testado em dois estudos humanos para avaliar sua segurança, tolerabilidade e sinais de eficácia em pacientes celíacos que comem glúten. Esses foram estudos de padrão-ouro – testes aleatórios e controlados com placebo, nos quais nem os pesquisadores que prescrevem as drogas nem os pacientes sabem quem recebe a droga e quem recebe o placebo, até que o estudo se encerre.
Juntos, os testes não registraram excesso de efeitos colaterais em pacientes que receberam o Larazotide, em comparação aos que receberam o placebo. E o mais importante: o primeiro e menor estudo demonstrou que o agente reduziu a disfunção da barreira intestinal induzida pelo glúten, a produção de moléculas inflamatórias e sintomas gastrointestinais em pacientes celíacos. E o segundo e maior estudo, relatado em uma palestra em abril, mostrou que os pacientes com DC que receberam placebo produziram anticorpos contra a transglutaminase tecidual, mas o grupo tratado não o fez. Até onde sei, esse resultado marca a primeira vez que uma droga interrompeu um processo autoimune, interferindo especificamente em uma resposta imunológica contra uma molécula produzida pelo corpo. Outras drogas que suprimem a atividade imunológica atuam menos especificamente. Recentemente, a Alba recebeu aprovação da FDA para expandir os estudos do Larazotide para outros distúrbios autoimunes, incluindo diabetes tipo I e doença de Crohn.
Essas novas perspectivas terapêuticas não significam que os pacientes com DC podem abandonar as restrições alimentares a qualquer momento. A dieta poderia também ser usada de uma nova maneira. Sob a liderança de Carlo Catassi, minha equipe na University of Maryland iniciou um estudo clínico de longa duração para testar se bebês em alto risco, não comendo nada que contenha glúten até depois de seu primeiro ano, podem ter atrasada a instalação da DC ou, melhor ainda, preveni-la inteiramente. “Alto risco”, nesse caso, significa bebês com genes suscetíveis e seus familiares mais próximos com histórico do distúrbio.
Suspeitamos que a abordagem pudesse funcionar, porque o sistema imune amadurece dramaticamente nos primeiros 12 meses de vida e porque pesquisas com bebês suscetíveis mostraram que evitar o glúten durante essa fase desenvolve o sistema imune para tolerar o glúten nos anos seguintes, como fazem as pessoas saudáveis, em vez de serem hiperestimuladas por ele. Até agora, mais de 700 crianças geneticamente potencialmente suscetíveis participaram desse estudo, e conclusões preliminares sugerem que retardar o consumo de glúten reduz em quatro vezes a probabilidade do desenvolvimento da DC. Serão necessárias décadas, entretanto, até sabermos com certeza se essa estratégia pode impedir o próprio aparecimento da doença.
Considerando a base aparentemente comum entre os distúrbios autoimunes em geral, pesquisadores dessas condições estão ansiosos para verificar se algumas estratégias terapêuticas para a DC poderiam também ser úteis para outras doenças autoimunes atualmente sem bons tratamentos disponíveis. E, com várias abordagens diferentes na estratégia de tratamento da DC, podemos esperar que essa doença, atormentando a humanidade desde o início da civilização, vive seu último século na Terra.

CONCEITOS-CHAVE

- A Doença Celíaca (DC) é um distúrbio autoimune desencadeado pela ingestão de glúten, uma proteína importante no trigo, ou de proteínas similares em outros grãos.
- Pesquisas sobre as causas básicas indicam que o distúrbio se desenvolve quando uma pessoa exposta ao glúten tem também uma suscetibilidade genética para a DC e uma parede intestinal anormalmente permeável.
- De modo surpreendente, essencialmente o mesmo trio – um gatilho ambiental, uma predisposição genética e um “intestino vulnerável” – parece ser também a base para outras doenças autoimunes. Essa descoberta aumenta as possibilidades de que novos tratamentos para a DC possam também melhorar outros distúrbios.

[CIÊNCIA BÁSICA] - DIGESTÃO NORMAL
No trato digestivo normal, o alimento parcialmente processado no estômago entra no intestino delgado, que é revestido com projeções em forma de dedos chamadas vilosidades. Enzimas pancreáticas e na superfície das células epiteliais constituintes das vilosidades (enterócitos) quebram a maior parte do alimento até seus componentes menores – como glicose e aminoácidos. Então esses nutrientes passam para a corrente sanguínea para alimentar os tecidos por todo o corpo. A Doença Celíaca altera a absorção de nutrientes ao danificar os enterócitos e ao achatar as vilosidades, o que reduz a superfície disponível para interagir com os alimentos.


GETTY IMAGES (sistema digestivo); JEN CHRISTIANSEN (fotoilustração); KIM MOSS – ELECTRONIC PUBLISHING SERVICES, INC. (ilustração do intestino
FATOS RÁPIDOS
- Cerca de 1% da população global tem Doença Celíaca, embora a maioria não saiba disso.

- Mais de 2 milhões de pessoas nos EUA são atingidas pela doença.
- Alguns sintomas comuns em bebês e crianças são dores abdominais, inchaço, obstipação, diarreia, perda de peso e vômitos.
- Cerca de metade dos adultos com o distúrbio não sofrem de diarreia no diagnóstico.
- Outros sinais que podem ocorrer em adultos são: anemia, artrite, perda de massa óssea, depressão, fadiga, infertilidade, dores articulares, convulsões e entorpecimento nas mãos e pés.

[VISÃO GERAL] - UMA TRÍADE DE CAUSAS
Três fatores estão por trás da Doença Celíaca: gatilho ambiental, suscetibilidade genética e, de acordo com as pesquisas do autor, intestino anormalmente permeável. O autor suspeita que a mesma tríade básica contribua em outras doenças autoimunes, embora cada distúrbio tenha os próprios gatilhos e componentes genéticos.

GATILHO
A proteína glúten, abundante no endosperma no caroço do trigo, causa a resposta imune aberrante. Proteínas relacionadas na cevada e no centeio (hordeína e secalina) fazem o mesmo.
PREDISPOSIÇÃO GENÉTICA
Quase todos os pacientes têm os genes para a proteína HLA-DQ2 ou HLA-DQ8, ou ambas. Essas moléculas de HLA expõem fragmentos de glúten às células do sistema imunológico, que então direcionam um ataque ao epitélio intestinal. Outros genes estão normalmente envolvidos também, mas esses coadjuvantes adicionais podem diferir de pessoa para pessoa.
INTESTINO DELGADO VULNERÁVEL
Na maioria das pessoas, ligações conhecidas como complexos juncionais “colam” as células intestinais umas às outras. Naquelas com Doença Celíaca, as junções se afastam, permitindo que uma grande quantidade de fragmentos indigeríveis de glúten vaze ao tecido subjacente e incite as células do sistema imune. Tratamentos que reduzem a vulnerabilidade poderiam potencialmente atingir não apenas a Doença Celíaca, mas também outros distúrbios autoimunes envolvendo intestinos anormalmente permeáveis.
KIM MOSS Electronic Publishing Services, Inc.
[MISTÉRIO] - Pista Para o Atraso do Começo

Pessoas com Doença Celíaca nasceram com uma suscetibilidade genética para isso. Então por que alguns indivíduos não mostram evidências da doença até uma fase tardia? No passado, eu diria que o processo da doença provavelmente ocorreria no início da vida, mas de modo muito suave para causar sintomas. Mas agora parece que uma resposta diferente, que tem a ver com as bactérias encontradas no trato digestivo, pode ser mais correta.
Esses micro-organismos, conhecidos coletivamente como o microbioma, podem diferir de pessoa para pessoa e de uma população para outra, e até variando no mesmo indivíduo em função da progressão de sua vida. Aparentemente eles podem também influenciar quais genes em seus hospedeiros estão ativos em um determinado momento. Portanto, uma pessoa que tem seu sistema imune programado para tolerar glúten por muitos anos pode repentinamente perder a tolerabilidade, se o microbioma se modifica de modo a fazer os genes de suscetibilidade, anteriormente inertes, se tornarem ativos. Se essa ideia estiver correta, a Doença Celíaca poderia um dia ser prevenida ou tratada pela ingestão de microrganismos auxiliares selecionados, ou “probióticos”. – A.F.

POR QUE É DIFÍCIL SUBSTITUIR O TRIGO
O glúten é a principal razão pela qual os produtos de panificação feitos com trigo são leves e aerados. Durante o cozimento, as bordas do glúten aprisionam água e gás carbônico (de fungos e outros agentes fermentantes) e se expandem. Para fazer produtos livres de glúten, os padeiros geralmente combinam vários tipos de farinha (além de féculas e aditivos), pois não há uma variedade única que mimetize as propriedades da farinha de trigo. Essa necessidade aumenta significativamente o custo do produto resultante. Isso também explica por que os produtos livres de glúten sofrem na comparação de sabor e textura com suas contrapartidas que contêm glúten. – A.F


JIM MCKNIGHT AP Photo

[OLHANDO ADIANTE] - IDEIAS DE TRATAMENTOS
Hoje os pacientes com Doença Celíaca têm uma opção terapêutica: evitar todos os alimentos que contenham glúten. Mas já que seguir uma dieta restritiva pode ser difícil, pesquisadores estão explorando outras opções para os pacientes, como essas listadas abaixo. Esses são passos iniciais do processo; nenhuma das drogas da tabela chegou aos estudos clínicos avançados necessários para ganhar a aprovação para o mercado


FONTES: WWW.CLINICALTRIALS.GOV; “DIAGNOSIS AND TREATMENT OF CELIAC DISEASE,” POR L. M. SOLLID E K.E.A. LUNDIN, EM MUCOSAL IMMUNOLOGY, VOL. 2, NO 1; JANEIRO DE 2009
 Mechanisms of disease: the role of intestinal barrier function in the pathogenesis of gastrointestinal autoimmune diseases. Alessio Fasano e Terez Shea-Donohue em Nature clinical practice gastroenterology & hepatology, vol. 2, no 9, págs. 416-422; setembro de 2005.


Diagnosis and treatment of celiac disease. L. M. Sollid and K.E.A. Lundin em Mucosal immunology, vol. 2, no 1, págs. 3-7; janeiro de 2009.

Alessio Fasano é professor de Pediatria, Clínica Médica e Fisiologia e diretor do Centro de Pesquisas em Biologia de Mucosas e do Centro de Pesquisas em Doença Celíaca da University of Maryland School of Medicine. Muito de suas pesquisas básicas e clínicas focaliza o papel da permeabilidade intestinal no desenvolvimento da Doença Celíaca e outros distúrbios autoimunes.

Fonte: http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/surpresas_da_doenca_celiaca_imprimir.html

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